A Lei nº 14.434, de 4 de agosto de 2022 que institui o piso salarial para os profissionais da enfermagem – enfermeiros, técnicos, auxiliares e parteiras – entrou em vigor no dia 5 de agosto de 2022 com consideráveis repercussões orçamentárias e financeiras a todos os contratantes desses profissionais – públicos ou privados -, que merecem avaliações cuidadosas de modo a viabilizar a concretização desse direito.

A Associação Nacional das Fundações Estatais de Saúde, como entidade representativa de fundações públicas de direito privado, atuantes na área da saúde pública, e que congregam a rede de gestão e assistência no Sistema Único de Saúde, tem sido instada a orientar a acerca da eficácia e aplicabilidade dessa lei pelas afiliadas.

Cumpre advertir que as considerações que se expõe tratam o tema de modo amplo, generalista, e, portanto, não são aptas a refletir as peculiaridades de cada fundação estatal afiliada. Implementar a Lei nº 14.434/2022 enseja avaliação minudente segundo a realidade de cada ente federativo e respectivas fundações estatais. Ademais, é necessário considerar que a lei é recente e há debates no campo jurídico e, inclusive no âmbito do Poder Judiciário que podem impactar na aplicabilidade e eficácia dessa lei.

Em princípio, toda lei presume-se legítima, salvo declaração judicial em contrário, obrigando a todos e, no caso em voga, por expressa disposição legal, a vigência é imediata.  

Outro referencial importante para análise de aplicabilidade da lei em questão no que toca ao setor público, são as razões apresentadas no voto do Ministro Luís Roberto Barroso em relatoria da ADI nº 7145 no sentido de que os projetos de lei para alteração de carreiras são de iniciativa exclusiva do Poder Executivo por impactarem aumento de despesa. Nesse ponto, não cabe ao Poder Legislativo, por iniciativa própria, majorar os gastos do Poder Executivo sem demonstrar como o impacto adicional será compatibilizado com o orçamento. 

Cabe-nos, por evidente, considerar o tratamento público a essa norma, pois, embora as fundações estatais atuem sob regime de direito privado e os vínculos de seus profissionais, estejam sob regência da Consolidação das Leis do Trabalho, a relação laboral é de emprego público. 

Portanto, ainda que sob natureza de entidades não dependentes, fato é que as fundações estatais operam por meio de contratos programáticos, ou seja, contratos administrativos de diversas modalidades – a exemplo de contratos de gestão, contrato de programa, convênios – com os entes públicos instituidores e parceiros, de modo que os recursos têm origem pública, submetidos, portanto, a alguns limites e contenções constitucionais e legais.

Nesse sentido, embora para o setor privado essa norma tenha aplicação imediata, para o setor público, e para o setor público-privado, essa aplicação sofre algumas contenções, sujeitas que estão a especificidades segundo as normas de finanças públicas, e, ainda, no particular desse ano de 2022, pela incidência do processo eleitoral nas circunscrições federal e estaduais que agrega vedações, ainda que temporárias, à aplicação desses recursos públicos.

Assim, orientamos que, a partir da análise do perfil institucional e dos contratos firmados por cada fundação pública de direito privado afiliada, observem as seguintes diretrizes para as medidas de observância ao piso salarial dos profissionais de enfermagem que componham seus quadros institucionais:

I – DIRETRIZ NORMATIVA:

A Emenda Constitucional nº 124, de 14 de julho de 2022 instituiu o piso salarial dos profissionais de enfermagem, como também determina que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios têm, até o fim exercício financeiro em que publicada a lei federal, para ajustar as remunerações e os respectivos planos de carreira de seus profissionais. Portanto, a data final para esse ajuste é 31 de dezembro de 2022.

I.1 – AO QUE SE DEVE PROCEDER:

A partir dessa imposição constitucional, devem os entes federados proceder às análises, projeções de impactos e readaptações dos planos de carreiras para a readequação das remunerações dos profissionais de enfermagem ao piso instituído pela Lei nº 14.434/2022. Por assim, dizer, estamos aqui na esfera da previsão e institucionalização formal de deveres.

II – DIRETRIZ NORMATIVA:

As finanças públicas têm regramento nos arts. 163 a 169 da Constituição Federal, e são parametrizadas pelas leis orçamentárias em cada esfera federativa. Para assunção de quaisquer despesas ou aumento de despesa pública (mesmo que se trate de investimento) é preciso ter por norte as vedações constitucionais estabelecidas no art. 167, da Constituição Federal. Essas normas, de modo geral, encontram reprodução nas respectivas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais e Distrital. De modo geral, essas vedações estão regidas pela máxima de que toda despesa pública depende de previsão orçamentária.

Assim, a se considerar a premissa já referida de que as fundações estatais operam por contrato administrativo, o passo fundamental para a implementação do piso salarial para os profissionais de enfermagem dos seus quadros será a previsão orçamentária pelo ente instituidor – União, Estados, Municípios ou Distrito Federal para os custos desses contratos, que, sofrem o impacto dessa inovação legislativa. O art. 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal impõe esse suporte na lei orçamentária porque a recomposição salarial implica incremento de uma despesa obrigatória e continuada, logo, requer planejamento e lastro orçamentário.

II – DIRETRIZ NORMATIVA: A Lei nº 9.504/1997 que dispõe sobre normas para as eleições, estabelece condutas vedadas aos agentes públicos em campanhas eleitorais, dentre as quais, a hipótese do inciso VIII, do art. 73:

“fazer, na circunscrição do pleito, revisão geral da remuneração dos servidores públicos que exceda a recomposição da perda de seu poder aquisitivo ao longo do ano da eleição, a partir do início do prazo estabelecido no art. 7º desta Lei e até a posse dos eleitos”.

O conceito de servidores públicos na referida norma é amplo, o que abarca empregados públicos. 

A norma limita-se à circunscrição do pleito, portanto, nesse ano de 2022, não alcança municípios. No entanto, há que se considerar que a finalidade da tutela legal (lisura do pleito e paridade de armas), não se limita ao aspecto territorial, mas, à ingerência do poder político – conforme cargos submetidos a sufrágio – e os quadros geridos.  

II .1 – AO QUE SE DEVE PROCEDER:

  • a) As fundações estatais cujos entes instituidores e/ou contratantes são apenas municípios, a implementação do piso deve-se dar o quanto antes, observado o aspecto de previsão orçamentária e lastro contratual sobre os quais se tratou acima;
  • b) As fundações cujos entes instituidores e/ou contratantes sejam Estados, Distrito Federal e/ou União, ainda que estejam plenamente organizadas e com previsões orçamentárias para a recomposição contratual e aplicação do piso, somente poderão fazê-lo, após findo o prazo de defeso eleitoral que, para essa hipótese estende-se até a data de posse do eleito (1º de janeiro de 2023).

As circunstâncias apontadas nos itens I e II darão base para uma revisão dos contratos administrativos, à luz das normas gerais de contratação pública – art. 58, I, § 2º e art. 65, II, “d” e §§ 5º e 6º da Lei nº 8.666/1993 (Lei nº 8.666/1993), art. 6º LIX e art. 135, I da Lei 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos), assim como o art. 81, VI da Lei 13.303/2016 (Lei das Estatais) – que lastreiam a prestação de serviços e contratação de profissionais pelas fundações estatais, para suprir a execução do objeto contratado. A partir desse levantamento da demanda revisional, da proposta e aprovação da revisão contratual, da previsão orçamentária e da superação do período de defeso eleitoral (nas situações aplicáveis), é que se torna possível, legítima e efetiva a adequação dos pisos salariais para os profissionais de enfermagem.

Pode-se identificar, portanto, um passo a passo a ser cumprido para a efetiva implementa do piso salarial para os profissionais de enfermagem, de modo que a vigência da lei, não necessariamente implica que as instituições estejam compelidas de pronto a aplicar o piso nas remunerações, na medida em que as regras de finanças públicas repercutem sobre os contratos administrativos.

A partir de tais considerações propõe-se um fluxo para o efetivo cumprimento da lei do piso salarial pelas fundações estatais para os profissionais de enfermagem:

1. PREVISÃO: LEVANTAMENTO DOS QUANTITATIIVOS DE PROFISSIONAIS E DO MONTANTE DE DESPESAS COM A APLICAÇÃO DO PISO LEGAL. DELINEAMENTO DO PLANO DE CARGOS E CARREIRAS SEGUNDO A PROJEÇÃO DO PISO SALARIAL. *

(*) Nesse ponto devem ser considerados eventuais pactuações trabalhistas por acordos ou convenções coletivas.

2. DELINEAMENTO: ESTIMATIVA DA NECESSIDADE DE RECOMPOSIÇÃO ECONOMICO-FINANCEIRA DOS CONTRATOS DE GESTÃO (OU CONTRATOS AFINS) PARA VIABILIZAR A MANUTENÇÃO DO QUADRO DE PROFISSIONAIS, CONFORME DEMANDA DE SERVIÇO E REMUNERAÇÃO ADEQUADA À LEI.

3. NEGOCIAÇÃO E NORMATIZAÇÃO: DEFINIDA A ETAPA 2, DEVE-SE ESTABELECER A INTERFACE COM ENTE INSTITUIDOR PARA ASSEGURAR O LASTRO ORÇAMENTÁRIO AOS CONTRATOS PARA VIABILIZAR A GARANTIA DO PISO SALARIAL – PREVISÃO LEGISLATIVA E REPACTUAÇÂO DOS CONTRATOS. O QUE DEVE OCORRER A TEMPO DE DELIBERAÇAO E APROVAÇÃO DA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL, DE MODO QUE POSSA HAVER A EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA EM 2023.

4. EFETIVAÇÃO: PARA OS ENTES INSTITUIDORES QUE ESTÃO SOB RESTRIÇÕES DO PERÍODO DE DEFESO ELEITORAL, A EFETIVAÇÃO DESSE REAJUSTE SOMENTE PODE SE DAR APÓS A POSSE DOS ELEITOS (1º DE JANEIRO DE 2023).

Vislumbra-se que a aplicação do piso para entidades vinculadas à administração pública, ainda que indireta, por depender de uma interação de diversas obrigações legais, somente alcançará efetividade no curso do ano de 2023, não o devendo ultrapassar, salvo situações excepcionais e devidamente motivadas.

Fundamental alertar que, em hipótese de inviabilidade de recomposição orçamentária para os contratos administrativos que operacionalizam as fundações estatais, estas, obrigadas que estão ao cumprimento do piso salarial, deverão recompor seus serviços, de modo a assegurar esse direito, sob pena de descumprimento de obrigação trabalhista com possíveis impactos desde multas administrativas a riscos de judicializações individuais ou coletivas.

Cumpre ressaltar que o projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional contemplava norma de reajuste anual do piso por índice inflacionário (art. 15-D), sob veto presidencial e no aguardo de deliberação pelo Legislativo. Portanto, é recomendável, uma estimativa paralela de projeções de despesas considerando os impactos desse reajuste anual, em caso de derrubada do veto. 

Registra-se, por fim, que o tema das vedações eleitorais sobre as condutas de agentes públicos relacionadas ao reajuste de remuneração de servidores públicos é polêmico, mas encontra jurisprudência uníssona do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), embora não assentada em enunciado ou súmula, no sentido de que: (a) recomposição de carreiras e (b) reajustes salariais para recomposição de perdas inflacionarias não configurariam as hipóteses de vedações previstas nos incisos VII e VIII do art. 73 da Lei nº 9.504/1997. Temos a compreensão, para a qual ressalvamos possíveis entendimentos diversos, de que as repercussões da instituição de um piso salarial por lei constituem hipótese distinta das tratadas pela referida interpretação do TSE.  

Sobre esse tema específico, recomendável a consulta à compilação do TSE, acessível pelos links indicados:

A ANFES ressalta que essa é uma análise prévia, que submetemos ao processo de diálogo que nos é característico, para que alcancemos um consenso acerca das condutas juridicamente mais seguras e que efetivamente concretizem esse direito fundamental e valoroso dos profissionais de enfermagem.